quinta-feira, 4 de setembro de 2008

TEATRO E O POVO BRASILEIRO

“Dificilmente se poderá conseguir idêntico equilíbrio entre os artistas do teatro, sobretudo, se não for implantado entre nós o teatro de massas, uma vez que este, pela própria indole dos espectadores, tratará sempre de temas coletivos, transplantando para o palco os conflitos da maioria, sem o esquematismo e o psicologismo a que estão obrigados os autores da pequena-burguesia. O nosso teatro precisa, portanto, começar de novo, ou apenas começar, pois partiu do meio para o fim, deixando de margem o povo”.

O povo brasileiro nunca foi ao teatro. Nossas casas de espetáculo são, em geral, frequentadas por uma minoria neutra, sem expressão do ponto de vista da sensibilidade, da cultura, e até mesmo dos nossos costumes. Essa circunstancia é que produziu a confusão estabelecida nos debates sobre o assunto, pois, os pesquisadores do fenômeno entenderam de atribui-lo á falta de um público suficientemente preparado para aceitar a renovação de temas e de processos cênicos. (...) Eles se esquecem de que o artista é, ao mesmo tempo, unidade e massa, e que a obra se produz em uma zona neutra de equilibrio, controlada, concomitantemente, pelo criador, o critico, a massa e a individualidade. Nessa zona de equilíbrio, de harmonia, se a obra interessar ás multidões, será uma obra teatral. O povo, portanto, tem razão quando se ausenta, e nega, assim, ao nosso teatro o direito de considerar-se nacional, legitimamente brasileiro, reflexo da nossa indole, dos nossos costumas, da nossa cultura e civilização. Muitos são os fatores determinantes da lamentável situação em que se encontra o nosso teatro, em relação à cultura popular.

O primeiro é a feita de um teatro inicial, ou primário, como o seria o Teatro do Povo. Por esse motivo não se poderá, honestamente, atribuir nenhuma culpa aos autores profissionais, atualmente considerados como sub-literatos, uma vez que estavam mantendo, embora com sacrifício da própria dignidade cultural, o relativo que ainda consegue o nosso teatro despertar no espírito da minoria neutra, a chamada pequena-burguesia, que determina, implacavelmente, o baixo nível artístico ou literário, e o premeditado mau gosto de muitas de suas produções. Essa minoria que frequenta os teatros, e que assim torna possível a sua existência, age por intermédio do empresário industrial, e este, por sua vez, impõe aos autores a má qualidade de suas peças. Caso único representante do público que ainda vai aos teatros, alguns empresários industriais transformaram a arte dramática em negócio, e a produção teatral em mercadoria especialmente destinada aos seus fregueses. (...)

Temos assim o fracasso completo, que abrange os empresários, os velhos autores e os renovadores. Para os empresários, o teatro é um negócio. Para os velhos autores, o “espelho da vida”. E para os renovadores, cenografia, iluminação funambulesca o guarda-roupa. De tudo isso resultou que, hoje em dia, o espectador médio parece superior aos autores o aos artistas, enquanto o espectador erudito procura iludir-se com as falsas renovações, e o espectador-povo ignora completamente a existencia do teatro.

Entretanto, o nosso povo tem uma disposição intelectual e sentimental privilegiada para o teatro, e não importa a sua incultura, quando se sabe que, para um autor de verdadeiro talento, o publico ideal, do ponto do vista da capacidade de emoção, seria um público de analfabetos. A ação pura é sempre entendida e apreendida, Ramon Bender lembra que mais inculto era o público grego, e mais ainda o inglês e o espanhol do século XVI, e no entanto, “Edipo” e “Hamlet” eram êxitos formidáveis de cultura. (...)

Um povo que não lê, para fugir a abstração, e que prefere que as idéias lhe entrem pelos olhos, deve ser um público verdadeiramente excepcional para o teatro(...). Se é possível produzir-se um grande espetáculo sem o auxilio de uma só palavra, imagine-se o que se poderá realizar com o emprego das palavras estritamente indispensáveis à condução de um raciocínio perfeito. Aí está a razão pela qual o nosso povo, na falta dos antigos espetáculos de circo, com as suas pantomimas, necessariamente sem palavras, e de ação intensa, se movimentou em massa, apaixonadamente, para os campos de futebol, o esporte que passou a constituir o verdadeiro teatro nacional...
A paixão pelo futebol, em todo o Brasil, indica a disposição do nosso povo para o verdadeiro teatro, o teatro sem literatura, simples, direto, instintivo, que apenas articula acontecimentos reais, ou arbitrários, mas sempre subordinados a preocupação de mostrar a verdade. O espetáculo que se realiza nos campos de futebol é sempre o mesmo, mas exerce cada dia maior influência sobre os espectadores, porque o público está, em cada partida, diante de uma incógnita fundamental: a vitória de um dos grupos ou o desfecho imprevisto que, nos dramas de teatro, é invariavelmente o motivo central do interesse da platéia.
Nas funções futebolísticas tudo é ação dramática, sem palavras, sem cenários, sem iluminação especial, com guarda-roupa uniforme, mas oferecendo homens em constante movimento, a improvisar a urdidura do espetáculo. Ali tudo se faz naturalmente, sem truques, sem desvirtuamentos da ação dramática por meio de palavras ou emprego de uma lógica tendente a iludir o raciocínio do público, ou ainda obrigando-o a reagir contra as imposições cerebrais do autor. Que importa que a “peça” seja sempre a mesma, se o espetáculo é sempre diferente?
Porventura, no teatro, não se representam sempre as mesmas peças, na mesma “boca de cena”, com os mesmos cenários, as mesmas situações, e, dentro de cada época, com as mesmas roupas? Mas há uma diferença: o público do futebol sabe que nunca será iludido, como se faz com o do teatro, que raramente assiste a um espetáculo natural, humano, senão a uma função de teatro teatral. “O bom teatro deve ser mais real do que a realidade e mais verdadeiro que a verdade”, desde que essa realidade e essa verdade cheguem ao público nas suas justas proporções. (...) Todos os “artistas” estão subordinados a uma função, dentro da harmonia do espetáculo, apenas exercendo, cada qual, sua personalidade no âmbito que lhe foi previamente traçado.
Dificilmente se poderá conseguir idêntico equilíbrio entre os artistas do teatro, sobretudo, se não for implantado entre nós o teatro de massas, uma vez que este, pela própria índole dos espectadores, tratará sempre de temas coletivos, transplantando para o palco os conflitos da maioria, sem o esquematismo e o psicologismo a que estão obrigados os autores da pequena-burguesia. O nosso teatro precisa, portanto, começar de novo, ou apenas começar, pois partiu do meio para o fim, deixando de margem o povo.